Julho_2006 - page 54

na, da flora, da parentela - não mais
o sujeito. É onde quero chegar.
Criticam-me por dizer isso, é escan–
daloso; mas reafirmo que não se
deve mais trabalhar com base nessa
idéia de um sujeito agindo sobre um
objeto. Esse foi o bê-á-bá da filosofia
ocidental. Como Descartes, diria: O
homem, mestre e senhor da natureza.
E, além do mais, como expliquei
ontem, homem no sentido de esper-
mático, fálico. Oqueme parece estar
emjogo, dealgummodo, éessa perda
do sujeitodentro de um conjuntomais
vasto - a invaginação do sentido, que
remete ao fato de que isso retorna ao
oco, ao buraco, à terra, à mãe-terra.
Talvez se devesse abandonar essa
concepção de um subjetivo agindo
sobre um objetivo, o mundo. A idéia
que proponho, nomeu último livro, é
a idéia do trajetivo. Não mais o sub-
jetivo agindo sobre um objeto, e sim
a reversibilidade, o feedback. Morin
diria a ação/retroação.
Mais uma vez: vocês poderão en–
contrar, na publicidade, expressões
dessa trajetividade. Não mais pensar
na publicidade no sentido da aliena–
ção, de que eu crie tal anúncio para
influenciar o público (essa ainda é
uma concepção simplista), mas como
um vai-e-vem. Uma açãopublicitária
não funciona senão porque vai cor–
responder, de fato, àquilo que virá a
ser. É preciso abandonar a noção de
sujeito, assim como a de objeto. Não
émais preciso ter medo da técnica. É
preciso não ter mais medo de nada
emgeral.Tudoqueexisteépermitido.
Quanto à técnica, quando vemos sua
elaboração no século 19 e até a inter–
pretação heidegeriana, é justamente
aquiloqueéomotor do sujeito agindo
sobre um objeto. A técnica é aí o ele–
mento mediador para dominar a na–
tureza. Vocês conhecem a expressão
de Hegel quando diz: "Fazer parte
da astúcia da razão"? Como vocês
traduziriam isso? Astúcia, artimanha?
É como a razão consegue fazer algo
diverso daquilo que estava previsto.
Parafraseandoessa idéiahegeliana, eu
me refiro a "uma astúcia da técnica".
Como a técnica -que se inscrevia no
âmbito desse desencantamento do
mundo - está em vias, atualmente,
de participar de um re-encantamento
do mundo? Aparentemente, a idéia
da tecnologia é que isso se realizou
e tornou o mundo frio. Mas, graças
à tecnologia, essa é a nossa maneira
de reaquecer o mundo, se posso me
expressar assim.
Um exemplo mais preciso: a ex–
pressão de Max Weber - traduzida
em francês, eachoque em português,
como "desencantamento do mundo",
Entzauberung der Welt - deveria ser
traduzido como desmagificação do
mundo. Antes, algo que remeteria aos
pés da razão, pelo fato de não haver
mais magia. No meu entender, con–
temporaneamente, a técnica remetea
uma remagificação do mundo.
Vejam a relação que temos com o
nosso computador, ou nosso telefone
celular - são relações mágicas. Se o
computador não funciona, a gente
xinga, agride o computador. Desen–
volvemos uma relação emocional
com umobjeto. Poderíamosexaminar
uma quantidade de exemplos onde há
algo, em relação aesses objetos técni–
cos, que é da ordem do pensamento
mágico. Nisso reside uma pista, que
mostraconcretamentequenãoseestá
mais dentro da dialética do sujeito e
do objeto, mas que há outra relação,
mágica. Não possuímos um objeto
- somos possuídos por ele. Isso nos
força a rever a questão, que, não é
mais ode um sujeito agindo sobre um
objeto, esim, comodisse há pouco- a
idéia de trajetividade.
Nossa relação com o mundo, aquilo
que eu dizia no início - não mais
o mundo como sendo mau, sujo,
imundo - mas como sendo aquilo
com o qual eu preciso lidar. Aquilo
comovocês dizem, comoqual eu sou
obrigado a "me virar".
JR
- No Brasil, "se virar" leva à noção
do jeitinho...
MAFFESOLI
- Jeitinho? Talvez o "jei–
tinho" pudesse ser outra relação dessa
ordem. A expressão francesa para jei–
tinhoé "biais, avoir un biais". Quando
alguém tem "le biais", quer dizer que
sabe sevirar, dar um jeitoou contornar
a administração. A palavra biais em
latim significa "bi-axis", um duplo
eixo. Portanto, nãomais simplesmente
uma verticalidade, uma coisa queéao
mesmo tempo brutal e simples, e sim
algo que tem um duplo eixo.
Não há mais uma relação simples
com o mundo, que é simplesmente
dominante, mas a inserção em um
duploeixo, nabi-axialidade. Portanto,
a técnica não tem um eixo único: a
verticalidade, a dimensão fálica dos
objetos contundentes, mas existe, de
fato, uma pluralidade.
1...,44,45,46,47,48,49,50,51,52,53 55,56,57,58,59,60,61,62,63,64,...126
Powered by FlippingBook