 
          
            Revista da ESPM
          
        
        
          |maio/junhode 2012
        
        
          
            94
          
        
        
          comportamento
        
        
          Imaginemos uma cena comezinha de nosso cotidiano
        
        
          urbano. Estamos parados com nosso automóvel num
        
        
          desses congestionamentos gigantescos na cidade de São
        
        
          Paulo. À nossa frente, uma fila de carros que nos permite
        
        
          andar poucos quilômetros a cada dez ou quinze minu-
        
        
          tos... De repente um cidadão ao nosso lado pega a faixa
        
        
          exclusiva de ônibus e, em toda a velocidade, transgride
        
        
          a lei, a mesma que nos cinge ao marasmo da espera. O
        
        
          que se passa em nosso íntimo? Em primeiro lugar, uma
        
        
          vontade inequívoca de que um agente do Estado multe
        
        
          o transgressor, severamente. E, em segundo lugar, que a
        
        
          ordemseja novamente restabelecida. Afinal de contas, se
        
        
          todos se dispusessem a desobedecer às regras de convi-
        
        
          vência básica no trânsito, por que cargas d’água seríamos
        
        
          nós os defensores de uma lei emasculada e inimputável?
        
        
          Neste caso específico, clamamos por umEstado legíti-
        
        
          mo que garanta a todos a mesma punição, caso aconteça
        
        
          que sobrevenha aos mais pressurosos a sede por uma
        
        
          liberdade plena e incoercível.
        
        
          Maspoderíamosaplicar estamesma lógicaàsvárias ins-
        
        
          tânciasdavidasocial?CabeaoEstadolegalgarantirsempre
        
        
          a ordem e os limites de nossas liberdades individuais?
        
        
          Se seguirmos a escola anglo-saxã, deveríamos dizer,
        
        
          peremptoriamente, depende... Há um espaço de nossas
        
        
          vidas privadas, inviolável, no qual as escolhas   devem
        
        
          prescindir ao máximo do arbítrio da normatividade
        
        
          constitucional. Esse seria o âmbito de nossas opções
        
        
          religiosas e sexuais, por exemplo. Há outros nos quais
        
        
          é absolutamente imprescindível a presença do Leviatã,
        
        
          como no caso da garantia pétrea à propriedade privada.
        
        
          Se nossa opção analítica fosse a escola rousseauniana,
        
        
          o Estado, baseado numa burocracia formal e legal (no
        
        
          sentido de Max Weber), ocupar-se-ia sempre em aliciar e
        
        
          locupletar-se dos cidadãos, retirando-lhes a criatividade e
        
        
          forças produtivas, ingerindo-se no que concerne apenas
        
        
          ao livre-arbítrio dos homens. Enfim, domesticando ao
        
        
          seu jaez a liberdade espoliada aos seus atores políticos.
        
        
          Curiosamente, no caso brasileiro, o pensamento liberal
        
        
          encontra-se mais à vontade com o filósofo Jean-Jacques
        
        
          Rousseau do que com os ingleses... E o pensamento de es-
        
        
          querdaprefereumEstadomaispresentenavidadocidadão,
        
        
          Tópos, que os herdeiros de Rousseau jamais admitiriam,
        
        
          incluindo os arautos de Marx que, aliás, glorificavam o
        
        
          pensador suíço como ummarxista
        
        
          
            avant la lettre
          
        
        
          ...
        
        
          Mas, sob uma ótica um pouco menos formalista do
        
        
          que aquela que a filosofia política costuma nos ensinar,
        
        
          devemos buscar na sociologia recursos teóricos mais
        
        
          ricos para responder de maneira mais complexa a nossa
        
        
          indagação inicial.
        
        
          O
        
        
          
            ethos
          
        
        
          moderno caracteriza-se por uma busca de-
        
        
          senfreada do prazer sensorial e tudo o quanto a cultura
        
        
          tecnológica do entretenimento pode oferecer de diversão
        
        
          ao ser humano. Os sociólogos costumam chamar a essa
        
        
          cultura pragmática e individualista de narcisismo.
        
        
          Trata-se do final da metafísica entendida aqui não
        
        
          no sentido Heideggeriano [do filósofo alemão Martin
        
        
          Heidegger], mas na certeza  do homem científico de que
        
        
          os deuses estão definitivamente mortos e que nossas
        
        
          existências terrestres devem enfrentar com coragem e
        
        
          altivez o silêncio e o desamparo cósmicos.
        
        
          Dirá Jean-Paul Sartre para não agirmos de má-fé,
        
        
          desobrigando-nos de nossas imensas vicissitudesmorais.
        
        
          Pois bem, como recusar ao homemmoderno seu quinhão
        
        
          de liberdade absoluta, uma vez que ele só tem essa vida
        
        
          para realizar plenamente sua existência? Caberia ao
        
        
          estado democrático de direito esse papel?
        
        
          Como convencer as pessoas que querem fazer a dife-
        
        
          rença (nossa indústria cultural idolatra as corruptelas
        
        
          mal compreendidas do
        
        
          
            american way of life
          
        
        
          ) de que elas
        
        
          devem sofrear seus desejos sejam eles quais forem... as
        
        
          melhores roupas e viagens e automóveis... o prazer da
        
        
          carne, do sexo e das drogas?
        
        
          Por que a marcha da maconha mobiliza mais a ju-
        
        
          ventude brasileira do que a tragédia da educação ou o
        
        
          desatino agrário?
        
        
          A resposta parece ser porque a individuação moderna
        
        
          baseia-se no desaparecimento por completo do outro,
        
        
          portanto, na vida que umdia a sabedoria grega chamoude
        
        
          esfera pública do agir político, a Pólis. Interessa ao sujeito
        
        
          moderno apenas ele mesmo, já que o mundo dos outros
        
        
          significa apenas um empecilho intratável à felicidade
        
        
          Setodossedispusessema
        
        
          desobedeceràsregrasdeconvivência
        
        
          básicanotrânsito, porque, cargas
        
        
          d’água, seríamosnósosdefensores
        
        
          deuma lei emasculadae inimputável?