Revista ESPM Mai-Jun 2012 - NEM BABÁ, NEM BIG BROTHER a eterna luta do indivíduo contra o Estado - page 97

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A
nte as incessantes transformações que vive o
ambiente da comunicação, é oportuno cons-
truir relações entre pensamentos sociais,
olhar psicanalítico e questões que cercam
o sujeito contemporâneo. É possível, por exemplo, en-
contrar afinidades entre a constituição do sujeito em
sua cepa narcísica e as caracterizações de forças que ora
regem a sociedade ocidental, em especial o consumo e
as relações de pertencimento e referencialização que
emergem na contemporaneidade, o que pode sinalizar
estratégias a serem consideradas pela comunicação
A premissa do espelho
O psicanalista francês Jacques Lacan, emseu estudo de-
nominado
Estádio do espelho
, explica que as bases do que
se constituiria em relações de referencialização, ainda
na mais tenra idade do sujeito, nada mais é do que o re-
flexo de umamor incontinente. Isso ocorre quando uma
mulher se debruça sobre o berço e fala coisas doces para
seu bebê. Ela lembra de recomendações ancestrais sobre
a importância, para a criança, de ouvir a suave voz de
sua mãe a acalmar e a demonstrar seu amor. Afinal, por
quanto tempomais ela poderia cuidar integralmente de
sua vida, protegê-lo, afastá-lo dos riscos do mundo? Ali,
deitado no berço, ele pode ser cuidado, amado e sentir o
que ela deseja de melhor para ele. Que seja sempre tão
amoroso, lindo e fofo como agora o é. Que saiba pedir o
que lhe é devido, como quando chora pelo leite ou pela
nova fralda. Que seja feliz. Que seja forte para segurar as
barras do mundo tão cruel que um dia há de enfrentar.
Neste gesto habitual, que compõe o dia a dia de tantas
mães, pais e filhos, o retrato lindo de uma família amo-
rosa, transpira, entretanto, a relação que acompanhará
essa criança por toda a sua vida. Na incapacidade de
se perceber ainda como sujeito, sentindo um mundo
como se ele fosse o mundo também, passa a ver esse
mundo – e, portanto, a si mesmo – a partir do olhar e da
voz dessa mãe. A projeção feita sobre ele, no melhor e
mais nobre dos sentidos, se tornará constituinte de sua
psiquê. Primeiro, com a visão de si pela descrição feita
por sua mãe – ou por quem desempenhar a função da
maternidade –, como um corpo que é visto por alguém
e, a partir da imagemsobre ele, constituindo-se por essa
premissa e lembrando que essa reação já lhe garantiu
bons ganhos afetivos em retorno. Mais à frente, alguém
nomeará o bebê para o bebê – tal como em um espelho
“aquele é o bebê!” –, que causará estranheza a princípio,
pois a sua relação com seus pares gerou a percepção de
que os outros não são
eles
, mas simparte dele, oumelhor,
ele
, o bebê. Este registro se consolidará em percepção
um pouco mais tarde, entre os seis e os dezoito meses
de idade, quando o bebê perceber que não é outra pessoa
no espelho ou na fala das pessoas que o cercam, mas
que é ele separado.
Umdos aspectos que tornamesta dialética impressio-
nantemente forte e atual é a questão da identificação,
que se torna elemento constitutivo desse sujeito. Há
uma ilusão e uma imagem à qual ele ficará vinculado e
da qual tentará se aproximar. E, como Norberto e Célia
Bleichmar detalhamno livro
A psicanálise depois de Freud
(Editora Artmed, 1992), “somente pelo fato de viver com
outros homens, os seres humanos ficampresos, irrever-
sivelmente, emum jogode identificações que os impelem
a repetir aquela relação com a imago antecipatória”. O
mesmo que um dia, quando bebê, participou da consti-
tuição domesmo sujeito, naquelemomento fragmentado
e narcisicamente voltado apenas para si, mesmo ainda
sema percepção de si. O espelho torna-se, pois, uma boa
metáfora para o reflexo do outro em mim e o reflexo de
mim mesmo – que é um reflexo, e não o eu de verdade.
O sujeito e a sua identidade
A inspiração no pensamento de Jacques Lacan permite
trazer à discussão visões sobre a constituição do sujei-
to na denominada contemporaneidade. Tomando-se o
ponto de partida proposto por Stuart Hall, em seu livro
A
identidade cultural na pós-modernidade
(DP&A Editora,
2006), ocorre o surgimento de novas identidades e da
“Somentepelo fatodeviver
comoutroshomens, os seres
humanosficampresos,
irreversivelmente, emumjogo
de identificaçõesqueos impelem
arepetiraquelarelaçãocom
a imagoantecipatória”
Norberto&CéliaBleichmar
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