RESPM-MAI_JUN-2015-alta

ponto de vista Revista da ESPM |maio/junhode 2015 158 Fernando Henrique Cardoso Oconsumonas sociedades contemporâneas O consumoéumacategoriacentral paracom- preender as sociedades contemporâneas. Por muitos séculos a maioria da humani- dade viveu nomeio rural, produzindo boa parte do que consumia e trocando pequenos exceden- tes em feiras locais. O quadro mudou definitiva e radi- calmente com a Revolução Industrial, a divisão social do trabalho e a monetização das relações econômicas. Praticamente todos os bens de consumo se converteram emmercadorias, que se compram e vendem em transa- ções monetárias, em escala nacional e internacional. Surgiu assima sociedade de consumo, demãos dadas como capitalismo industrial e a revolução científico-tec- nológica. Adinâmica do capitalismo se sustentou— como de resto se sustenta até hoje — na constante expansão do consumo, nãoapenaspelamaiorofertadeprodutos jáexis- tentes, mas, sobretudo, pela permanente diversificação de bens e serviços, derivada de inovações tecnológicas. Inovações tecnológicas transformadas emnovos pro- dutos de consumo para omaior número possível de indi- víduos — eis o motor que move o capitalismo (e que tem sido o principal responsável pelo progressomaterial da humanidade). Se, por um lado, o capitalismo tem capa- cidade de produzir mais emelhores bens e serviços, por outro, ele, por si mesmo, não assegura acesso equitativo a essa crescente e cada vez mais diversificada oferta de mercadorias. Sua lógica econômica não coincide comos valores e aspirações de justiça e equidade que emergiram junto como capitalismo industrial, mas não emnecessá- ria harmonia comele, a partir da Revolução Francesa. O compromissohistóricoentredemocraciae capitalismose sustenta na regulação pública das relações de consumo. As lutas sociais pelo direito a padrões mais elevados de consumo tomaram várias formas. Assistimos às lutas sindicais para elevar os salários dos trabalhado- res acima do nível da simples sobrevivência e assegurar- lhesmaior participação no consumo dos novos produtos e serviços responsáveis pela melhoria da qualidade de vida. Testemunhamos as lutas políticas para que deter- minados bens e serviços (saúde, educação etc.) ganhas- sem o status de bens sociais, e que o acesso a eles fosse assegurado pelo Estado, e não pela capacidade de com- pra individual nos mercados. Presenciamos o surgi- mento dos movimentos em defesa do consumidor. Por fim, vivenciamos a emergência de movimentos como o ambientalista ou o chamado “fair-trade”, que confe- rem ao ato de consumo o caráter de uma escolha ética e, assim como os movimentos em defesa dos consumi- dores, têm incorporado os temas do consumo à esfera pública e à disputa política e cultural. Tudo isso nos leva a concluir que o consumo não pode ser visto como umassunto restrito às relações privadas entre empresas e indivíduos. Progressivamente, omundo do consumo passou a ser campo de atuação de governos emovimentos sociais e culturais. Isso não apenas o sub- meteu a leis e códigos escritos, que obviamente também alcançaramomundo da produção,mas o tornou palco de uma discussão sobre valores. Umnúmero cada vezmaior de indivíduos concebe o consumo não apenas como um ato voltado à sua satisfação pessoal, mas tambémcomo expressão de compromissos éticos com a humanidade e a natureza. A responsabilidade socioambiental deixa de ser umslogan para se tornar uma diretriz de compor- tamento. Deixa de ser uma excentricidade para ganhar milhões de corações e mentes. Nesse cenário, as ciências que estudamoconsumonão devem se limitar ao ângulo, indispensável, mas insufi- ciente, dasmotivações egocêntricas dos consumidores e das estratégiasmais eficientes das empresas para enten- der e atender essasmotivações. Elas precisamconsiderar as dinâmicas sociais, políticas e éticas que atravessam e são parte constitutiva da sociedade contemporânea. Fernando Henrique Cardoso Sociólogo e ex-presidente da República do Brasil latinstock

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx